sexta-feira, 15 de abril de 2011

...no terceiro minuto a partir do crepúsculo

o mar a enrolar


O CHEIRO DAS ONDAS NO INSTANTE EM QUE O AR É MAIS FRIO DO QUE A ÁGUA

Normalmente é no terceiro minuto a partir do crepúsculo que o ar da praia é mais frio do que a água . Não no segundo nem no quarto: no terceiro e durante onze segundos, o que requer discernimento, atenção e paciência. O melhor é encostarmo-nos à muralha, de queixo na palma, vigiar as gaivotas, dar fé da mudança de cor no horizonte e nisto, mal o terceiro minuto começa, tira-se a palma do queixo para que o ar poise nela e aí está: pega-se no ar da praia, mete-se no bolso e leva-se para casa sem deixar entornar. Tem que se utilizar logo visto que no dia seguinte, a partir das dez, já o ar aqueceu. Puxa-se com cuidado do bolso e respira-se devagarinho.

Sou feito de cardos e há palavras que deixei secar em mim ou a vida secou. Claro que vou escrevendo, vou respirando, até me acontece, às vezes, orvalhar-me. Mas escondo. Dantes fechava-me à chave na casa de banho para não ver o meu desespero. Depois abria a porta e saía a assobiar. Há alturas em que assobiar custa imenso. Fazia um esforço e conseguia, sem que ninguém notasse, uma revoada tímida de lágrimas. Podiam ser melros ou pombos ou assim, mas eram lágrimas. As lágrimas também podem fazer ninho nas árvores ou nas empenas dos telhados. Tenham paciência não falem comigo agora.

Que indignidade eu ter sido feliz, eu ser às vezes feliz. De modo que fico por ali um bocado, por acanhamento, por delicadeza e vou-me embora. Há-de chegar um dia em que não me irei embora. Tu, que não conheço ainda, ou imagino que não conheço, ajuda-me a ficar. Ocupo pouco espaço, quase não faço barulho, nunca grito, não incomodo ninguém. Leva-me contigo e ajuda-me a ficar. Tenho a ternura simples mas aos nós. Como as tuas unhas são mais compridas do que as minhas desata-me isto tudo.

É bom nascer no instante em que o ar é mais frio do que a água. Trouxe-o aqui no bolso para ti. Há-de haver, nalgum sítio, a minha última casa… no terceiro minuto a partir do crepúsculo, não nem no segundo nem no quarto, a inventar uma flor. Se não te importas conta-me uma história em que as pessoas casem no fim.


- António Lobo Antunes -

cores do meu pais- primavera

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